Em março de 2019, ocorreu uma tragédia na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano. Adolescentes armados entraram na escola atirando e, infelizmente, alunos e profissionais da escola foram atingidos. Alguns perderam a vida, outros foram fisicamente feridos e todos foram emocionalmente abalados. Houve uma grande comoção na cidade que gerou uma repercussão internacional.
Vivi a experiência de fazer parte do grupo de profissionais que acolheram as famílias vitimizadas pela tragédia, especialmente no dia do velório, na Arena de Suzano. Também realizei, ao final dos cortejos, o acolhimento coletivo dos profissionais que participaram das ações de cuidado.
Na época eu trabalhava em Unidade Básica de Saúde como fonoaudióloga integrativa, bem como eu
coordenava o processo de implementação das práticas integrativas e complementares em Saúde no município. Eu já havia incorporado a visão integral de cuidado à minha prática profissional. Eu já havia passado pelo intenso processo de “desformação”/formação da UNIPAZ. Tinha finalizado minha formação em Psicologia Transpessoal (dezembro de 2018) e já me preparava para minha segunda Transformatura do curso Formação Holística de Base (turma 14). Vi muito e aprendi muito na minha trajetória na UNIPAZ e ao longo de minha atuação na área do cuidado.
Mas, de forma alguma, eu me sentia preparada para lidar com a tragédia. Tive dúvidas em vários momentos se eu conseguiria me sustentar diante de tanto sofrimento e desespero. Diante de mim havia apenas um mar de dor e eu apenas me sentia parte dele. A dor daquelas pessoas era também a minha dor. A perplexidade coletiva também era a minha perplexidade.
Na Arena de Suzano, havia uma grande equipe engajada em prestar apoio prático, cuidados físicos e
acolhimento emocional para todos os presentes. Eu me questionei sobre a viabilidade de realizar as práticas integrativas e complementares em um contexto tão grave. Logo percebi que minha mente não daria conta da vivência e deixei meu coração me conduzir.
Mesmo com toda comoção, consegui estar presente. Consegui contribuir com as Práticas Integrativas – Meditação, Terapia do Canto e Reiki. Fiquei muito surpresa ao constatar a potência das Práticas Integrativas mesmo em uma situação tão especial. Estratégias breves e singelas de cuidado integral possibilitaram que algumas pessoas tivessem recursos para sustentar a dor, inclusive fisicamente, mantendo-se de pé durante a despedida de seus entes queridos.
Foi um momento inédito e aterrador para muitos de nós. Ficamos todos mergulhados na tristeza. Presenciamos ao mesmo tempo uma grande união e um grande exercício coletivo de solidariedade. Foi possível transformar a empatia em atitudes compassivas. Formou-se uma grande unidade de amor.
Após o funeral coletivo, compus uma canção terapêutica:
Somos todos Um
Juntos somos mais
Potentes e vitais
Para transformar a dor em paz
A tragédia em Suzano expôs a fragmentação e o adoecimento de uma sociedade. Ficou evidente a necessidade de investir na Educação para a Paz e na Educação para o Cuidado. Porém, não percebi mudanças neste sentido nos meses seguintes, em relação à gestão pública. Infelizmente, encontramos fragmentação também na busca de soluções.
Atualmente, não faço mais parte do Sistema Público de Suzano. Optei por construir um novo caminho, no qual a educação para a paz e para o cuidado não são apenas um ideal, são a realidade na qual acredito e atuo.
Em 2020, estamos diante de um grande desafio global, também inédito para a maioria de nós: a pandemia do vírus COVID 19. Uma tragédia coletiva que nos coloca em contato com a dor da perda, com nosso apego e com nossa impotência. Somos convidados, direta ou indiretamente, a lidar com o tema da morte. O medo desafia nossos corações a tomarem as rédeas de nossas vidas e a nos manter no presente e não na incerteza do futuro. Tem sido muito difícil evitar a dor e um grande desafio conseguir manter a serenidade. Nenhum livro ou curso prepara um terapeuta para algo assim. É onde estamos todos nós.
Nesse contexto, atendi ao longo de quase um mês, por meio de terapia integrativa à distância, uma senhora de 73 anos que fez uma cirurgia cardíaca delicada e foi infectada pelo vírus COVID 19 durante sua internação. Foi um processo terapêutico inédito e desafiador para mim. Seu estado era muito grave e seu campo estava muito denso e conturbado. Seu coração, sua alma e seu sistema familiar ansiavam por uma oportunidade de cura e libertação muito além da realidade física. Todos os cuidados físicos, emocionais e energético-espirituais que ela recebeu permitiram que ela ficasse o tempo suficiente para a efetivação de sua cura e libertação.
Por meio dessa experiência, entrei em contato com a potência e com as limitações da atuação terapêutica, bem como com o grande mistério da vida e da morte. Segui o caminho do coração, acolhi as dúvidas da mente e consegui estar plenamente presente, menos terapeuta, mais humana.
Faz poucos dias que ela fez a passagem e ainda me sinto triste, em luto, mesmo diante da grandeza da experiência que tive. Vivenciei uma unidade com ela, sua família e toda equipe que cuidou dela. Essa unidade de amor fez toda a diferença.
Esses acontecimentos dolorosos aparentemente geraram feridas em mim, mas sinto que na verdade geraram ranhuras em uma “casca” de proteção que começou a se desintegrar. Essa “casca” é o que me separa do outro, da dor e da realidade do outro. Sinto que situações devastadoras como a tragédia na escola Raul Brasil e a pandemia do COVID 19 são convites para dissolvermos a ilusão de que somos separados e sozinhos; são oportunidades para percebermos, de fato, que somos todos um, que formamos uma unidade tanto na dor como no amor.
O despertar para a necessidade dessa união pode curar todos nós, bem como a terra em que habitamos. A dor e a perda também fazem parte de nossa experiência terrena e precisam ser vivenciados. Nenhuma teoria ou técnica pode nos ensinar isso. Mas podemos nos entregar a essa experiência, sendo humanos, antes de terapeutas, abrindo a escuta e conectando nosso coração ao coração do outro.
Aprendi que o caminho do coração costuma ser mais curto do que o caminho da mente. Em situações tão aterradoras é o coração e seu pulso constante que nos sustenta, que nos fortalece e nos permite estarmos presentes e sintonizados com o coração do outro, mostrando para o mesmo que ele não está só.
Nunca estará. Afinal, somos todos Um.
Ozana Clara de Medeiros é Terapeuta Transpessoal. Facilitadora de processos de cura a partir da energia Reiki, canto e diálogo terapêutico. Mestre em Reiki.
Formação UNIPAZ-SP: Especialização em Psicologia Transpessoal (2018); Formação Holística de Base (2019); Laboratório de Práticas Terapêuticas (2021).
Graduação em Fonoaudiologia – USP (1996). Atuação em Fonoaudiologia Clínica e Saúde Pública. Especialização em Voz – CEFAC-SP (2004).
Cantora e compositora.